Dentre os vários bens que são tutelados pelo Direito, existem aqueles que não possuem corporalidade, quer dizer, são imateriais. Como exemplo deles, pode
ser apontada a honra, que abrange a reputação ou a imagem da pessoa. A esse respeito, o ordenamento jurídico confere uma proteção tanto na esfera cível, quanto na seara criminal. Na
primeira a lei reconhece o dever de indenizar um dano moral comprovado, ao passo que na segunda ela comina penas privativas de liberdade em casos de calúnia, difamação e injúria.
Em 07 de agosto de 2018, o Superior Tribunal de Justiça julgou uma demanda em que, no meu entender, nenhum dos sujeitos do respectivo processo apresentou a reta razão.
O litígio em questão foi promovido por uma denúncia, na qual um advogado e a sua cliente foram acusados de terem praticado os delitos de injúria e de calúnia contra um magistrado. Pelo que
consta no acórdão do STJ, na oportunidade em que o referido causídico ofereceu embargos de declaração num feito de natureza tributária, ele registrou a sua irresignação
pelo fato de que havia tomado conhecimento que a procuradora da parte adversa, qual seja, uma determinada municipalidade, era ex-esposa do juiz. Num tom de sutil ironia, o advogado assim escreveu:
“[...] somente agora depois de prolatada decisão este causídico tomou conhecimento de que a Procuradora Geral do Município de Ji-Paraná, Dr(a). Leni Matias, que inclusive assina Oidakowski é vossa ex-mulher, [...] Vossa Excelência obviamente não vislumbrou impedimento legal ou moral em julgar processos da municipalidade, tanto que não se deu por impedido ou suspeito, no entanto gostaríamos de deixar claro que esta postura deixa este causídico e as partes desconfortáveis e causa evidente constrangimento. Ainda cabe parabenizar Vossa Excelência pela celeridade processual, pois a presente exceção foi julgada em menos de 90 (noventa) dias.”
No corpo da mencionada denúncia, a acusação afirmou que os réus ‒ patrono e cliente ‒ realizaram alusões pejorativas e graves contra a
honra do magistrado, insinuando que ele teria prevaricado (art. 319 do Código Penal), pois estaria favorecendo sua ex-esposa (Procuradora Geral do Município) no que toca a um suposto aceleramento do trâmite
processual. Tal insinuação, então, estaria colocando em dúvida a lisura profissional do juiz, com o nítido propósito de vexá-lo, humilhá-lo, menosprezá-lo e constrangê-lo
na condução da causa.
Quando a ação penal foi aceita pelo juízo de primeiro grau, o advogado denunciado, com o intuito de trancá-la, impetrou um habeas corpus alegando atipicidade ‒ por ausência do elemento subjetivo especial do tipo (animus caluniandi) ‒, além da sua imunidade profissional. O Tribunal de Justiça, por sua vez, denegou a ordem, sob o argumento de que a denúncia reunia
indícios mínimos de autoria e de materialidade delitiva. Por conseguinte, o causídico recorreu ao STJ, que terminou por lhe dar razão, determinando o trancamento da ação penal. Conforme
o entendimento desse tribunal, a ação penal carecia de justa causa, pois não foi constatado o dolo específico de caluniar ‒ animus caluniandi ‒, de modo que a ausência desse elemento subjetivo descaracteriza a tipicidade da conduta. Ademais, a corte superior ainda incluiu em sua fundamentação
a imunidade profissional do advogado como um fator excludente de antijuridicidade. Logo, foi dado provimento ao recurso interposto pelo causídico, o que provocou o mencionado trancamento da ação penal.
Pois bem, como afirmei anteriormente, entendo que a causa não recebeu a análise devida em nenhum dos momentos do respectivo trâmite processual, embora concorde com
o desfecho que extinguiu o processo criminal.
Nos delitos contra a honra, a lei não admite, em hipótese alguma, a criminalização de insinuações. Trata-se de uma realidade clara, haja vista
o texto normativo contido no art. 144 do Código Penal. Eis a transcrição:
“Art. 144. Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério de juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.”
Ao ler o arrazoado do referido causídico, o máximo que se pode conceber é uma
insinuação de uma possível prevaricação praticada pelo magistrado em questão; nada mais. Consequentemente, considerando a garantia constitucional do devido processo legal, a mencionada
denúncia deveria ter sido rejeitada de pronto, nos termos do art. 395, inciso II, do Código de Processo Penal. Com efeito, quando se trata dos crimes contra a honra, eu defendo o entendimento de que, no caso
de insinuações, a instauração do procedimento de explicações em juízo previsto no art. 144 do Código Penal constitui verdadeira condição específica da ação penal. Não é
nada adequado ‒ para não dizer impossível ‒ tentar realizar um exame tipológico em uma alusão. Se nem mesmo é possível constatar, objetivamente, a simples subsunção
entre a conduta e o modelo descritivo, como então poderá ser averiguado o elemento subjetivo do tipo? Ora, para apurar a intenção do agente ‒ animus jocandi, narrandi, defendendi, consulendi, criticandi ou corrigendi ‒ se faz necessário ter, antes, uma aparência acabada do delito. A existência desta encerra uma etapa que precede a identificação
do propósito do agente.
Portanto, a argumentação acerca da imunidade profissional, bem como a da ausência do animus caluniandi, na verdade, foram esforços dispensáveis. Sem o prévio procedimento de explicação em juízo ‒ condição
específica da ação penal ‒, a rejeição da respectiva denúncia era uma medida impositiva.